As Leveduras do Vinho: Mitos e Realidades

Os nossos olhos podem não o ver, mas num mero bago de uva reside um ecossistema pulsante. Diverso e profuso, este ecossistema desperta com a vindima e floresce plenamente na adega. No epicentro deste despertar não está apenas a mão do homem, mas sim protagonistas invisíveis e soberanas: as leveduras.


Mito 1: As Leveduras Apenas Servem para Criar Álcool

É em torno destes seres vivos microscópicos que se erguem alguns dos mais persistentes e equivocados mitos do mundo do vinho. Desta forma, para dissipar possíveis equívocos, iremos de seguida esclarecer exatamente qual é o papel imemorial e a importância insubstituível das leveduras na produção vínica.

As leveduras são fungos unicelulares que colonizam naturalmente as películas das uvas. Na enologia, a sua principal função é a de transformar o mosto em vinho propriamente dito.

Obtido por prensagem das uvas, o ‘mosto’ é o sumo que ainda não passou pelo processo de fermentação. Ao serem responsáveis por esta fermentação alcoólica, as leveduras desempenham um papel fundamental na produção de vinho. Essencialmente, transformam o açúcar das uvas em álcool e dióxido de carbono. Portanto, sem a intervenção das leveduras, nenhum vinho existiria.

Porém, dizer que apenas servem para criar álcool é como dizer que um arquiteto apenas desenha esboços. E assim é, dado que as leveduras são as primeiras arquitetas do perfil organoléptico de um dado vinho.

Com efeito, diferentes estirpes geram diferentes compostos numa vasta paleta de diferentes aromas, sabores e texturas: são as leveduras que produzem os ‘ésteres’, compostos determinantes nas notas florais e frutadas dos vinhos; são as leveduras, também, as responsáveis pela libertação de tióis e terpenos, os quais emergem do mosto em aromas de toranja, maracujá ou flor de laranjeira. Assim sendo, a escolha das leveduras molda, literalmente, o perfil sensorial do vinho.

Mas a sua função não se fica por aqui. De facto, além dos aromas, as leveduras influenciam ainda a textura do vinho. Por exemplo, ao produzirem glicerol, as leveduras transmitem corpo e maciez ao líquido resultante. Por fim, após a fermentação, a sua autólise (ou seja, a sua degradação natural) liberta polissacarídeos que amaciam os taninos e aumentam a perceção de volume do vinho no palato.

A enologia atual explora ainda as denominadas leveduras ‘não-Saccharomyces’. Estas, quando usadas em conjunto com as leveduras tradicionais, podem aumentar a complexidade, modular a acidez e até reduzir o teor alcoólico do vinho. Daí constituírem ferramentas naturais e inteligentes para responder aos desafios das alterações climáticas (visto que o calor pode degradar a expressão do terroir no vinho) e das novas preferências dos consumidores (os quais estão hoje a privilegiar vinhos menos alcoólicos).

Mito 2: As Leveduras Selecionadas são Artificiais e Descaracterizam o Vinho

Persiste a noção romântica de que apenas uma fermentação ‘selvagem’ - isto é, deixada ao acaso - pode gerar vinhos autênticos. Nesta visão, a inoculação do mosto com leveduras selecionadas mais não é que um ato artificial que apaga a identidade do terroir.

Contudo, a força dos factos é bem mais matizada. Porquê? Porque a fermentação espontânea é uma lotaria incerta e arriscada. Os microrganismos presentes nas uvas e nas adegas formam uma multidão indistinta onde coexistem leveduras notáveis com leveduras nefastas ou indesejáveis. Ora, estas leveduras nefastas podem interromper precocemente a fermentação ou deixar o vinho com aromas desagradáveis. O enólogo não pode deixar tais aspetos à mercê da sorte e do azar.

A utilização de leveduras selecionadas não é uma traição à natureza. É antes uma curadoria. O ponto fundamental reside na origem destas leveduras. O enólogo tem a prerrogativa de isolar e selecionar as estirpes mais notáveis de uma vinha ou região específica. Depois, pode multiplicá-las com vista a um uso congruente à tradição.

A seleção da levedura QA23 é um caso paradigmático. Isolada na Quinta de Azevedo, em plena Região dos Vinhos Verdes, tal estirpe de Saccharomyces cerevisiae tornou-se uma referência global na produção de vinhos brancos aromáticos. Além de não mascarar o terroir, a QA23 conduz uma fermentação limpa e precisa que permite às castas Alvarinho e Loureiro expressarem-se na sua plenitude. Em lugar de apagar a identidade da região, esta levedura autóctone funciona como uma espécie de potente holofote que ilumina a assinatura dos Vinhos Verdes.

Mito 3: A Autenticidade Exige Fermentação Espontânea

Uma extensão do anterior, este mito sugere que os grandes enólogos se demitem de qualquer controlo sobre a fermentação. Todavia, a prática de alguns dos mais reputados produtores portugueses demonstra exatamente o contrário. Na verdade, a escolha entre uma fermentação espontânea ou inoculada não é uma decisão ideológica, mas uma ferramenta técnica adaptada a cada colheita e a cada vinho.

Para os mestres, a levedura é um instrumento de precisão que garante a pureza aromática e a consistência necessárias para atingir a mais alta expressão do vinho. Por conseguinte, a autenticidade não reside na aplicação de um método cego, mas antes na visão do criador e na sua capacidade de a concretizar. A verdadeira autenticidade está no resultado final - isto é, está em vinhos que refletem de forma coerente e brilhante o potencial da sua origem.

De acordo com uma entrevista de 2015 no jornal Público, o próprio mestre Anselmo Mendes diz ter obtido uma bolsa de estudo para selecionar e estudar leveduras para os Vinhos Verdes. Esta experiência ocorreu muito antes de lançar o seu primeiro vinho com marca própria. Isto demonstra que a sua carreira profissional não começou apenas com a prática da vinificação, mas com uma investigação científica fundamental sobre os próprios agentes da fermentação.

As Leveduras como Elo entre Terroir e Vinificação

A conversa sobre leveduras deve abandonar falsas dicotomias entre ciência e natureza, ou entre artifício e autenticidade. Há milénios, as leveduras são fundamentais em bebidas e alimentos de fermentação como o pão, a cerveja ou o vinho, e podem intervir nalguns queijos e enchidos.

Dado o seu papel natural, essencial e milenar, as leveduras devem ser usadas pelo enólogo de acordo com os objetivos estilísticos de cada vinho. No fim, importa forjar uma aliança virtuosa entre o que o terroir oferece e o que a sabedoria executa. É esse o nosso propósito na Quinta da Alameda, com os nossos puros vinhos do Dão.


Perguntas Frequentes sobre Leveduras no Vinho

O que são as leveduras do vinho?

As leveduras são fungos unicelulares. Destas, o destaque no vinho vai para a espécie Saccharomyces cerevisiae. As leveduras transformam os açúcares do mosto em álcool e dióxido de carbono num processo basilar à vinificação.

O que fazem exatamente na fermentação alcoólica?

Conduzem a fermentação de modo completo e estável quando existem condições adequadas para tal (população viável, nutrientes e temperatura controlada). O objetivo passa por converter os açúcares disponíveis em etanol e CO₂, sem deixar açúcares residuais indesejáveis.

As leveduras influenciam os aromas e textura do vinho?

Sim. Estirpes diferentes produzem compostos que definem o perfil aromático (como ésteres, tióis e álcoois superiores). Geram também glicerol, o qual aumenta a sensação de volume do vinho. Após a fermentação, a autólise das leveduras suaviza os taninos e melhora a cremosidade.

O que são leveduras não-Saccharomyces e para que servem?

São espécies diferentes da S. cerevisiae, como a Lachancea thermotolerans e Torulaspora delbrueckii. Em cofermentação ou em sequência, podem aumentar a complexidade, modular a acidez (com produção de ácido láctico pela Lachancea) ou contribuir para baixar ligeiramente o teor alcoólico do vinho.

Fermentação espontânea vs. inoculada: qual é a diferença?

Na espontânea, a flora nativa da uva e da adega inicia a fermentação. Esta opção desagua numa maior variabilidade de resultados (nem sempre os desejados). Na inoculada, o enólogo escolhe uma estirpe estudada com vista a uma condução limpa e consistente. Estas são decisões técnicas, não ideológicas.

As leveduras selecionadas retiram autenticidade ao vinho?

Não, quando a seleção é criteriosa e autóctone. As estirpes diferem no desempenho e nos compostos que geram. Uma boa escolha exalta a tipicidade e reduz os desvios ou defeitos.

O que é o contacto com borras ('sur lie') e a bâtonnage?

Manter o vinho em contacto com borras finas (´sur lie’), ou proceder à bâtonnage, favorece a libertação de peptídeos e polissacáridos por autólise. Estas técnicas veiculam textura mais rica e maior complexidade ao vinho. Levadas a cabo após a fermentação, são técnicas clássicas em brancos e espumantes de qualidade.

Permanecem leveduras vivas em garrafa? E os sedimentos são um problema?

Depende do estilo. Vinhos não filtrados, pét-nat e alguns espumantes antes do dégorgement retêm leveduras e borras com depósitos visíveis, naturais e seguros. Em vinhos tranquilos, a filtração e a estabilização reduzem esta presença. Decantar melhora a limpidez no serviço.

O que é levedura Brettanomyces?

É uma levedura de contaminação que produz fenóis voláteis associados a notas de curral, adesivo e couro intenso. Controla-se com higiene rigorosa, gestão de SO₂, monitorização e boas práticas de cave.

Qual a diferença entre fermentação alcoólica e fermentação malolática?

A alcoólica é obra das leveduras e transforma açúcares em álcool. A malolática é conduzida por bactérias lácticas (Oenococcus oeni) ao converterem ácido málico em láctico e dióxido de carbono. A malolática suaviza a acidez e altera o perfil aromático. São duas fermentações distintas.


Artigo revisto e validado por Patrícia Santos, enóloga da Quinta da Alameda. Formada em Enologia pela UTAD (Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, 2001). Com prática aprofundada sob Anselmo Mendes. Ampla experiência profissional nas regiões vitivinícolas do Dão, Bairrada e Beira Interior, bem como em Arribes (Espanha).