Baga: a Casta, os Seus Amigos e os Seus Portentosos Vinhos


Corria o ano de 1756 quando Sebastião José de Carvalho e Melo decidiu instituir a Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro. Com isto, o futuro e todo-poderoso Marquês de Pombal esperava proteger o comércio e a qualidade do afamado Vinho do Porto. Todavia, para proteger este filho predileto, o Déspota Iluminado decidiu sacrificar quase todos os outros filhos da enologia nacional.

De modo a eliminar a concorrência ao vinho duriense, o Marquês ordenou então a execução de uma medida cega, drástica e violenta: o arranque impiedoso das vinhas da atual Bairrada, uma região cujos pergaminhos vinícolas precedem a própria fundação da nacionalidade.

A destruição de incontáveis videiras levou à destruição do sustento de inúmeras famílias bairradinas. Aos agentes da coroa coube silenciar a Bairrada e os seus vinhos. Contudo, o Marquês subestimou não apenas a teimosia das gentes da Beira, mas também a vitalidade de umas certas videiras que teimavam em renascer das raízes profundas: as videiras da casta Baga, a mais indomável resistente desta perseguição histórica.

A "Paga Dívida" e a Tirania da Quantidade

A casta foi elevada a matriarca da Bairrada não por ser de fácil trato, mas por ser absolutamente necessária àqueles que labutavam no limiar da pobreza. De facto, graças ao seu vigor exuberante e alta produtividade, a Baga assegurava o volume de vinho necessário para pagar as contas do ano agrícola. Daí que os agricultores também lhe chamassem ‘Paga Dívida’.

No entanto, já no século XX, tal generosidade produtiva acabaria por se tornar na proverbial faca de dois gumes. Dada a ênfase na quantidade, muitos produtores vindimavam cedo demais para evitar as primeiras chuvas do ano. Com origem nestas uvas, os vinhos da Baga eram vistos como demasiado rudes, ásperos e adstringentes.

Os gostos em evolução acabaram por rejeitar esta aspereza. Como resposta, houve quem tentasse amaciar os seus lotes com a introdução de castas internacionais como a Merlot ou a Cabernet. A identidade estava a ser diluída em nome da sobrevivência.

A Chegada dos Amigos da Baga

Mas a falha nunca foi da Baga, nem de quem a cultivava em zonas baixas, férteis e húmidas. A falha advinha da incompreensão da casta e dos deturpados incentivos impostos por um mercado assente em adegas cooperativas - afinal, com o pagamento da uva ao quilo, pouco importava se a Baga tinha qualidade ou não. Cansados desta situação, um punhado de produtores decidiu então mostrar que os predicados da Baga não se resumiam à resistência e produtividade.

Em 1980, famílias como os Pato iniciaram este movimento ao provarem que a suposta textura lanosa da Baga podia ser transmutada na textura da mais fina seda. E não estiveram sós nesta cruzada. Outros ‘Amigos da Baga’, como Mário Sérgio, foram fundamentais neste resgate. Com tranquila sabedoria e inabalável convicção, estes visionários provaram que a Baga não precisava de ser domada à força. Precisava apenas de ser bem trabalhada.

A grande revolução na qualidade não aconteceu somente nas adegas, mas também nas vinhas. Tal como no vizinho Dão, a mudança de paradigma levou ao sacrifício do volume em prol da excelência. Isto exigiu medidas como a monda de cachos, a qual foi sentida pelos antigos como um sacrilégio: como justificar o abandono de uvas no chão antes da vindima? Todavia, esta e outras medidas permitiram a obtenção de maturações regulares e homogéneas que em muito beneficiaram os vinhos nascidos da casta.

A Baga, do Barro da Bairrada ao Granito do Dão

É preciso compreender o solo para compreender a Baga. Isto porque, na Bairrada, o pecado original residiu na plantação em planuras baixas ou solos mais arenosos. Nestes locais, as raízes absorvem água demasiado depressa com as primeiras chuvas de setembro. Ora, como a Baga possui película sensível em cacho compacto, o excesso de água incha o bago ao ponto de o rebentar e fazer apodrecer. Além disso, os solos mais férteis fazem a videira demasiado folhosa, a maturação mais difícil e os vinhos mais ácidos.

Porém, a situação muda radicalmente nas encostas de solos argilo-calcários da região (os ‘barros’ que estão na origem do nome ‘Bairrada’). Aí, a casta encontra equilíbrio com a criação de vinhos frescos, estruturados, portentosos e de longa guarda. Estes solos barrentos oferecem excelente drenagem com a dose certa de humidade, algo que leva à melhor maturação das uvas e à sua maior complexidade aromática.

Já nos solos ácidos e graníticos do Dão, a Baga adquire uma qualidade mais mineral, mais linear, mais convergente. Aqui, os vinhos da casta são também moldados pela altitude e pela decorrente combinação de noites frescas com dias quentes. Na Quinta da Alameda, estes ingredientes do terroir levam a maturações sincopadas que geram taninos finos e acidez vincada, sem perda de estrutura. A nós, apenas nos cabe reverenciar esta casta tão carismática e representativa dos melhores tintos portugueses.  

A eminência da Baga não se limita, contudo, aos tintos. Na verdade, a casta também forma uma base extraordinária para espumantes de categoria mundial. Vibrante e tensa, a acidez natural da casta serve de esteio a estes espumantes designados pelos franceses de ‘Blanc de Noirs’ (ou seja, ‘Branco de Tintas’).

A Baga na Mesa Portuguesa

Mãe de soberbos tintos e fonte de espumante frescura, a versatilidade da casta é extensível aos seus variados enlaces gastronómicos. A Baga é uma casta de convívio, tão à vontade a passar o seu gume de acidez pelo Leitão à Bairrada (numa harmonização que é património cultural), como a suportar queijos intensos na sua estrutura. Os seus vinhos também conjugam modelarmente com a caça, os enchidos, as chanfanas, os pratos de forno e os cogumelos. Já os rosés de Baga, pela frescura e leve tanino, acompanham bem as saladas, os grelhados leves e a cozinha asiática. Por fim, além de serem excelentes com os tradicionais rissóis e pastéis de bacalhau, os espumantes sublimam o prazer gustativo dos mariscos mais ricos ou das comidas exóticas de subtil picante.

Numa Pequena Baga, Muitas e Grandes Lições

Finado em 1782, o Marquês de Pombal não compreendeu as potencialidades da Baga ou da Bairrada. E não foi o único ou o último, claro. É certo que a sua intervenção teve como propósitos salvar o Vinho do Porto e aproveitar melhor o agora famigerado Tratado de Methuen. Mas, como se viu, a fidelidade a este tratado com os Ingleses muito fez para atrasar o desenvolvimento de Portugal à custa da aposta num só filho pródigo: em troca de tarifas reduzidas para o Vinho do Porto (fundamentalmente), Portugal abriu as portas aos tecidos que alimentaram a Revolução Industrial no Reino Unido. E com isto, Portugal perdeu o incentivo para nutrir a sua manufatura interna em benefício da riqueza de outros. As lições disto tudo?

Talvez sejam as seguintes: não se pode cultivar a excelência por decreto; não se pode comprometer a identidade e a autenticidade; e não se pode ficar cego pelas impressões iniciais. Ao sobreviver a medidas despóticas e a mercados desvirtuados, a renegada Baga provou que a riqueza nunca esteve nas castas de Bordéus ou nos tecidos de Manchester. E tudo graças à sua teimosia e à ajuda de amigos sempre fiéis.


Casta Baga: Sumário

Nome Principal e Sinonímias

Baga, Paga Dívida (sobretudo no Dão)​, Tinta da Bairrada / Tinta da Baga (usadas no Douro e em referências mais antigas)​, Poeirinho / Poeirinha (Coimbra, Cantanhede, Ribatejo), Carrasquenho (Bairrada, Tomar)​, Baga de Louro (Dão e Bairrada). A Baga exibe um conjunto relativamente amplo de sinonímias usadas em diferentes regiões portuguesas. Algumas são históricas e outras ainda aparecem em rótulos ou literatura técnica.

Origem Genética e Geográfica

A origem da Baga parece ser fundamentalmente bairradina, com sólida ancoragem histórica na faixa litoral entre os rios Vouga e Mondego. Do ponto de vista genético, é uma variedade portuguesa antiga e bem diferenciada, mas cuja parentalidade ainda não está claramente estabelecida nos estudos de ADN existentes.​ Uma das suas progenitoras parece ter sido a Malvasia Fina B. Há quem proponha uma proveniência geográfica no vizinho Dão dada a maior intravariabilidade genética da casta nesta região; contudo, esta é uma hipótese muito debatida. De facto, os ampelógrafos do século XIX (Aguiar, Vila Maior) já classificavam a Baga como casta da Bairrada, com restrição local da sua origem.​ Hoje é consensual descrever esta casta como autóctone da região onde ocupa grande parte da superfície vitícola e onde constitui a casta tinta predominante.​ A difusão posterior ocorreu sobretudo para regiões vizinhas (como o Dão ou o Douro), mas também aparece no Alentejo e em Trás‑os‑Montes (muitas vezes em vinhas velhas sob sinonímias locais).​ Na Bairrada, o excelente desempenho da Baga está intimamente ligado a solos argilosos sob clima atlântico, algo que reforça a ideia de uma longa adaptação local.​ A presença de vinha pré‑filoxérica de Baga em algumas parcelas antigas, bem como a referência a “material genético mais antigo” anterior à seleção clonal moderna, sustentam a noção de um fundo genético tradicional enraizado na região, mesmo que a sua história de origem remota (eventuais cruzamentos ancestrais) permaneça por esclarecer.

Viticultura e Ampelografia

A Baga é uma casta exigente na vinha e muito bem caracterizada do ponto de vista ampelográfico. A sua reputação de “caprichosa” advém sobretudo da desafiante viticultura no clima atlântico fresco e húmido da Bairrada. Apresenta vigor geralmente médio a forte, com tendência produtiva elevada caso não exista controlo de carga. Isto exige poda severa, desavinho e (muitas vezes) desfolha parcial para assegurar maturação fenólica adequada.​ De maturação tardia, pede solos bem drenados e exposições quentes; nos anos mais húmidos de vindima é muito sensível à podridão cinzenta, pelo que o arejamento do coberto vegetal e gestão cuidadosa da produção são fundamentais.​ Apesar de ser adaptável a vários tipos de solo, mostra melhor comportamento qualitativo em barros argilosos, de média ou baixa fertilidade, com algum calcário.​ Quanto à ampelografia, o seu cacho é geralmente médio a grande, compacto, cilíndrico a cónico, com algumas asas; o bago é pequeno, esférico, de película intensamente colorida e polpa não corada; tais atributos explicam a sua aptidão para tintos estruturados, mas também para espumantes rosados e até “blanc de noirs”.​ Apresenta rebento jovem com tom esverdeado a bronzeado claro e folha jovem de tonalidade verde clara; folha adulta média a grande, em regra orbicular, frequentemente trilobada ou quinquelobada, seio peciolar aberto, dentes curtos regulares e página inferior com pilosidade ligeira.​

Sensibilidade a Doenças

​A Baga é sobretudo suscetível na fase de maturação (devido às podridões, mais do que por ser frágil perante outros agentes patogénicos). Tal sensibilidade surge do cacho compacto e maturação tardia, algo que exige arejamento do coberto (desfolha) e controlo rigoroso de produção. Exibe baixa sensibilidade ao oídio e ao míldio, um facto que poderá ter contribuído para a sua grande adaptabilidade ao clima da Bairrada. A escolha de parcelas em encostas, bem expostas e bem drenadas, é basilar à saúde da videira.

Corpo e Estrutura dos Vinhos de Baga‍

Os tintos de Baga tendem a materializar corpo médio a cheio, mas com sensação de firmeza mais do que de volume alcoólico. A combinação de taninos marcados e alta acidez veicula uma estrutura muito tensa e ideal para guarda.​ Normalmente apresentam teor alcoólico moderado (cerca de 12,5–13,5%), com uma concentração de cor e de compostos fenólicos que reforçam a perceção de corpo sem parecerem pesados. Mantêm quase sempre uma linha de frescura que os afasta do perfil sobremaduro.​ Os taninos firmes - por vezes rústicos na juventude - bem como a acidez elevada são aspetos típicos da casta. Tais atributos geram vinhos estruturados e muitas vezes austeros quando novos, mas com grande capacidade de evolução em garrafa.​

Taninos e Textura

Em regra, os taninos da Baga são fortes, firmes e estruturados, especialmente nos estilos clássicos da Bairrada. Podem parecer rústicos ou duros na juventude; todavia, com boa maturação em vinha e algum estágio, a textura e os taninos adquirem fineza e sedosidade. Bem trabalhada, a casta dá origem a vinhos de perfil estruturado e alongado no palato.

Acidez

A acidez dos vinhos de Baga é tipicamente alta e muito marcante. Tal acidez transmite frescura, tensão e grande capacidade de envelhecimento aos tintos e aos espumantes.

Sabores e Aromas

Os sabores e aromas típicos dos vinhos de Baga estão centrados em nuances especiadas e vegetais escoltadas por notas de tabaco e balsâmicas de cedro. O fruto dimana cariz silvestre. De facto, os frutos silvestres (amoras, framboesas, mirtilos) e a ameixa preta são descrições frequentes, muitas vezes em registo fresco nos estilos mais contidos de extração.​ Nalguns vinhos surgem também a cereja ácida e nuances de compota de frutos vermelhos (quando a maturação é mais avançada).​ Quanto às notas não frutadas, são muito típicos apontamentos de café, fumo, tabaco e erva seca, sobretudo nos vinhos mais estruturados e nos estilos clássicos da Bairrada (isto é, fermentados em lagar com engaços e envelhecidos em tonéis).​ Com envelhecimento em garrafa, podem emergir toques de couro, folhas secas, musgo, trufa e outras nuances terrosas, toques estes que acrescentam complexidade ao perfil da casta. Um Baga evoluído é saboroso, complexo, elegante e sofisticado.

Cor‍

A cor típica dos tintos de Baga vai de rubi relativamente aberta a rubi ou granada profunda, conforme a maturação e o estilo de vinificação. Nos anos secos e com boa maturação, origina vinhos bastante carregados de cor; nos estilos mais leves ou colheitas frescas, a cor pode ser mais aberta.

Potencial de Guarda‍

Em geral, os vinhos de Baga exibem potencial de guarda muito elevado. Em boas colheitas e estilos clássicos da Bairrada, é comum evoluírem positivamente durante décadas.


Artigo revisto e validado por Patrícia Santos, enóloga da Quinta da Alameda. Formada em Enologia pela UTAD (Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, 2001). Com prática aprofundada sob Anselmo Mendes. Ampla experiência profissional nas regiões vitivinícolas do Dão, Bairrada e Beira Interior, bem como em Arribes (Espanha).