A casta Alfrocheiro emerge do manto da história vitícola portuguesa com uma aura de mistério a envolver as suas verdadeiras origens. É estranho que uma casta tão notável e com tanta descendência ilustre não conheça todos os progenitores. Entre as dezassete descendentes da Alfrocheiro, estão variedades ditosas como a Jaen ou a Castelão.
Porém, qual filha bastarda de um rei medieval, durante muito tempo apenas se sussurrou sobre uma linhagem algures entre o solo pátrio e paragens mais distantes. O que se conhece certamente é a preferência da Alfrocheiro pelo Dão, um berço natural onde desvela toda a sua expressividade e carácter.
O nome ‘Alfrocheiro’ apenas ecoou com mais força nos registos após a devastadora praga da filoxera no crepúsculo do século XIX. No entanto, a sua presença em terras lusas é mais antiga. Documentos anteriores a 1800 já a mencionavam sob a designação de ‘Tinta Bastardeira’, um nome que ocultava a sua identidade precisa.
Porém, através de análises mais recentes do ADN, foi descoberto que a Alfrocheiro nasceu de um cruzamento natural e fortuito com a nobre variedade Savagnin oriunda do centro da Europa. Só não se conhece a outra casta que lhe deu origem.
Esta revelação acrescenta peso às antigas especulações sobre uma possível ascendência estrangeira. Sugere também uma complexa evolução em solo português. Mas, visto que a sua variação genética é algo estreita, tal evolução não terá tido muitos séculos para atuar.
Sendo assim, o mistério da sua origem parece residir mais na sua tardia catalogação em Portugal do que no seu súbito aparecimento em cena. Na verdade, ao impor um estudo mais atento das castas, a crise filoxérica apenas abriu a porta para que as qualidades singulares da Alfrocheiro cintilassem com maior fulgor. Mas que qualidades são essas?
Polivalente, tanto ascende em voos a solo nos vinhos monocasta, como se integra com mestria nos lotes mais tradicionais. Nestes casamentos vínicos, harmoniza de modo exemplar com outras grandes castas tintas, como a Tinta Roriz ou a Touriga Nacional. O galardoado Torreão da Quinta da Alameda é um dos vinhos que junta precisamente Alfrocheiro e Touriga Nacional.
Nestes vinhos, serve para oferecer cor profunda, estrutura tânica equilibrada e uma complexidade aromática que enaltece o todo. E é esta capacidade de formar cor, estrutura e elegância que torna a Alfrocheiro tão preciosa.
Ainda assim, a sua aptidão para vinhos de lote é mais vincada no Dão do que noutras paragens. A quarta casta mais usada nesta região, é aí que exprime toda a sua finura e complexidade aromática; noutros locais, é muitas vezes utilizada como mera ‘colorista’. Isto demonstra uma simbiose excecional com o terroir local: de facto, o cenário de eleição da cromática Alfrocheiro parecem ser as paisagens graníticas e os climas continentais temperados por brisas atlânticas.
Num mundo em transformação, a Alfrocheiro revela ainda uma faceta altamente estratégica: a sua notável capacidade para manter uma boa acidez natural, mesmo em anos de calor intenso ou de maturações mais avançadas.
Daí que esta casta tinta seja uma aliada impagável no combate às alterações climáticas. Num futuro que se aproxima veloz, a sua acidez e frescura intrínsecas irão ser vitais para preservar o perfil vivaz e elegante que define os melhores vinhos do Dão.
O universo sensorial desta uva é deleitoso e fragrante. No nariz, predominam os aromas de frutos silvestres - como a amora e a framboesa – bem como o morango maduro. Um Alfrocheiro do Dão pode surpreender com notas de alcaçuz e toques de especiarias.
Por vezes, para além de nuances florais que lembram flores do campo, também podem assomar apontamentos balsâmicos e herbáceos, como alecrim, pinho e agulhas de pinheiro. Com a evolução, esta é uma paleta com potencial para desenvolver aromas de frutos pretos amadurecidos, terra e especiarias.
No palato, os taninos gordos e bem integrados dão azo a uma textura aveludada. Por outro lado, a sua vibrante acidez é uma grande virtude que concorre decisivamente para o apelo, frescura e vivacidade dos vinhos de Alfrocheiro.
Geralmente de corpo médio, pode exibir maior corpulência de acordo com o terroir e escolhas de vinificação. Numa sincronia que convida à prova, o conjunto demonstra excelente equilíbrio entre álcool, taninos e acidez.
Origina vinhos de cor intensa e profunda, quase azulada, e de bom potencial de guarda. Com o tempo em garrafa, os seus taninos amaciam, os aromas primários de fruta evoluem em complexidade e acabam por fazer emergir as características notas terciárias que enriquecem a experiência sensorial.
Como é óbvio, a vinificação pode seguir diferentes caminhos. Mas as técnicas de maceração são em geral ajustadas para extrair cor e taninos de forma equilibrada - o seu propósito fundamental passa, normalmente, por realçar a qualidade da fruta. Para acentuar a estrutura, alguns enólogos optam também por uma maceração pós-fermentativa que extrai os taninos das grainhas.
O estágio em barricas de carvalho - muitas vezes francês e por vezes de segundo ano ou com tostas subtis - é prática comum para certos estilos que procuram polir os taninos e adicionar intrincado ao perfil sensorial. Todavia, a madeira nunca deverá subjugar a típica expressão frutada destas uvas.
A dualidade da Alfrocheiro – taninos firmes mas elegantes, acidez vibrante – oferece aos enólogos uma ampla tela de criação. Dela podem nascer vinhos jovens e pujantes onde a fruta e a frescura imperam, ou exemplares mais estruturados e com promessa de longevidade. O segredo da vinificação reside na gestão cuidada da extração e no uso judicioso da madeira (caso esta entre em cena).
À mesa, a Alfrocheiro é uma companheira versátil e assaz gastronómica. Os seus vinhos são especialmente um deleite com pratos de caça ou de carnes vermelhas tais como o veado, o javali ou o cabrito. Enchidos e queijos curados são outras das escolhas clássicas para acompanhar os vinhos desta uva. Na verdade, a acidez e estrutura tânica da casta tornam-na apta para quase todos os pratos com alguma untuosidade e veemência gustativa.
Os seus vinhos devem ser servidos a uma temperatura em torno dos 14º–18°C; além disso, a decantação ajuda sobremaneira a libertar o potencial odorífero da casta, mormente nos estilos mais estruturados ou envelhecidos.
Com estatuto varietal de topo, a Alfrocheiro é mais uma das muitas joias resplandecentes do tesouro vinícola português. Dados os seus atributos, o futuro desta casta merece brilho e reconhecimento. Efetivamente, num mercado global sedento de autenticidade e de vinhos que contam a história do seu lugar, a Alfrocheiro está bem posicionada para elevar as Terras do Dão como solo de vinhos autênticos, elegantes e de qualidade superlativa: é bem verdade que, mesmo não se conhecendo todos os progenitores, esta uva está longe de ser considerada uma mera bastarda no panorama enológico nacional.