O papel fundamental das leveduras do vinho, do mito à ciência.
Durante milénios, a transformação do sumo de uva em vinho constituiu um mistério. A dita "fervura" do mosto era um processo movido por agentes desconhecidos. Só no século XIX, com Louis Pasteur, a ciência revelou as verdadeiros protagonistas: as leveduras. Estes microrganismos não criam apenas álcool; na verdade, determinam a alma de cada vinho ao definirem o seu aroma, sabor e textura.
As leveduras transformam os açúcares da uva nos componentes-chave do vinho.
Realidade: Normalmente, a doçura provém do açúcar residual da própria uva. O enólogo interrompe a fermentação deliberadamente e impede que as leveduras consumam todo o açúcar disponível nas uvas. O nível de doçura é uma escolha estilística, não uma adulteração.
Realidade: As leveduras são pequenas fábricas artesanais de aromas. Produzem centenas de compostos (ésteres, tióis) que geram as notas frutadas e florais do vinho. A escolha da estirpe de levedura é uma decisão artística que molda a complexidade sensorial da bebida.
Realidade: Esta é uma falsa dicotomia. A fermentação espontânea (indígena) oferece complexidade com risco. A inoculada (selecionada) oferece segurança e consistência. A vanguarda atual combina o melhor dos dois mundos: as leveduras autóctones selecionadas que expressam o terroir com fiabilidade.
Realidade: Todas as leveduras produzem naturalmente sulfitos durante a fermentação. Um vinho "sem sulfitos" é bioquimicamente impossível. A sua adição controlada é uma ferramenta fundamental para proteger o vinho da oxidação e de contaminações.
A levedura desempenha dois papéis vitais. Primeiro, é a obreira que conduz a fermentação alcoólica. Segundo, é a arquiteta que constrói o perfil sensorial do vinho através de centenas de subprodutos metabólicos.
Uva (Açúcares)
Levedura
(*Saccharomyces cerevisiae*)
Álcool Etílico
(Estrutura e Corpo)
Dióxido de Carbono
(Bolhas ou libertado)
Compostos Aromáticos
(Ésteres, Tióis, etc.)
A escolha do tipo de levedura reflete a filosofia do produtor ou enólogo. As leveduras não-Saccharomyces (selvagens) iniciam o processo, mas a robusta Saccharomyces cerevisiae geralmente domina e finaliza a fermentação, seja ela nativa ou adicionada.
Comparativo da produção relativa de compostos-chave por diferentes tipos de leveduras. As estirpes selecionadas de Saccharomyces são otimizadas para produzir perfis aromáticos desejáveis, como ésteres frutados, e para mitigar os compostos indesejáveis.
Os primeiros vinhos são produzidos. A fermentação é ainda um mistério, um ato mágico ou até divino.
Dom Pérignon não "inventa" o Champagne, mas desenvolve técnicas para controlar a segunda fermentação na garrafa causada por leveduras "adormecidas".
Louis Pasteur prova que a fermentação é um processo biológico desencadeado por microrganismos vivos (leveduras). Nasce a enologia moderna.
A ciência permite isolar e selecionar leveduras. Os produtores portugueses isolam estirpes autóctones (como a QA 23), as quais se tornam num sucesso mundial.
A identidade única da região do Dão é forjada pela sua geografia, solos e castas. As leveduras são a ferramenta final para expressar este terroir singular ao traduzirem o potencial da uva em elegância e complexidade no copo.
Rodeada por serras, a região está abrigada de influências climáticas extremas.
Vinhas a 400-700m com grande amplitude térmica, com preservação da acidez e frescura.
Solos pobres e bem drenados que promovem a concentração e a mineralidade nas uvas.
Berço da Touriga Nacional e da Encruzado, as quais oferecem um potencial aromático e estrutural único.
As leveduras, em conjunto com o terroir e as castas, moldam um perfil de vinho reconhecido pela sua elegância, frescura e capacidade de envelhecimento.
SABER MAIS:
Artigo revisto e validado por Patrícia Santos, enóloga da Quinta da Alameda. Formada em Enologia pela UTAD (Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, 2001). Com prática aprofundada sob Anselmo Mendes. Ampla experiência profissional nas regiões vitivinícolas do Dão, Bairrada e Beira Interior, bem como em Arribes (Espanha).