Casta verdadeiramente ibérica, a Tinta Roriz é protagonista de inúmeras narrativas vínicas tecidas ao longo de inúmeros milénios. Dependendo do local onde é contada, esta narrativa pode assumir estilos e enredos muito distintos: no planalto elevado do Dão, por exemplo, a narrativa desta casta faz-se numa prosa grácil, requintada e de grande eloquência.
A odisseia da Tinta Roriz teve início na Antiguidade. Foram porventura os Fenícios que trouxeram para a Península Ibérica as castas primordiais que lhe haveriam de dar origem. Esta introdução deve ter ocorrido cerca de mil anos antes do nascimento de Cristo. Chamada de ‘Tempranillo’ na vizinha Espanha, esta casta tem, portanto, uma vasta tradição vitícola nos dois países ibéricos. E isto apesar de a primeira menção à Tempranillo remontar apenas a 1807.
O seu nome do outro lado da fronteira denuncia perfeitamente a sua notória maturação temporã - com efeito, ‘temprano’ significa ‘cedo’ na língua espanhola. Já no Alentejo, a casta é denominada mais frequentemente por ‘Aragonez’.
Esta diversidade nominal espelha a sua profunda integração e adaptação às diversas paisagens peninsulares. Em Portugal, ao ocupar cerca de 20.000 hectares de vinha, a Tinta Roriz é uma das castas tintas mais cultivadas. Mas a sua introdução em solo lusitano parece datar somente do início do século XIX. Curiosamente, o nome ‘Aragonez’ foi empregado no Douro logo em 1822, algo que sugere uma possível entrada pelo Alentejo antes da sua ascensão rumo a norte.
No âmago do Dão, o encepamento da Tinta Roriz é apenas suplantado pelo da Touriga Nacional. A casta encontrou aqui um lar seguro onde a altitude e os solos desfeitos de granito partilham grandes afinidades com regiões similares do lado espanhol. A sua presença é vital para o carácter dos vinhos regionais, aos quais oferece complexidade e atributos particulares. De facto, a Tinta Roriz é um pilar silencioso, mas fundamental, na cor, na fruta e na estrutura dos tintos da nossa região. E graças aos vibrantes tons vermelhos das suas folhas, a casta também contribui sobremaneira para o belo cromatismo da paisagem vinhateira do Dão durante o outono.
A ampelografia - ciência da identificação das videiras - pinta um retrato claro da Tinta Roriz. A folha adulta é grande, pentagonal, com cinco lóbulos distintos. A página inferior exibe uma média densidade de pelos prostrados e forte densidade de pelos eretos.
De tamanho mediano, os cachos são cilindro-cónicos e moderadamente compactos, embora possam surgir cachos maiores e mais abertos. Redondos ou ligeiramente ovais, os bagos exibem uma cor que varia entre o azul escuro e o negro-azulado. A pele, de espessura média, cobre uma polpa macia, incolor e sumarenta.
O seu ciclo fenológico justifica o nome Tempranillo. A brotação ocorre em época média, tal como a floração. O pintor (início da maturação) acontece também na época média. A videira mostra vigor mediano a alto, por vezes irregular, num porte ereto ou semi-ereto. É uma variedade produtiva, mas a eventual produção excessiva pode comprometer a qualidade do vinho.
Como expectável, a expressão da Tinta Roriz no Dão é profundamente marcada pelo terroir da região. Entre os 400 e 800 metros, a altitude pontilhada de vinhas promove variações térmicas diárias significativas. Nestas condições, os dias quentes concorrem para o desenvolvimento de açúcares e maturação fenólica das uvas; já as noites frescas ajudam a preservar a acidez natural e delicados aromas da casta.
Tal amplitude de temperaturas é fundamental na geração de vinhos equilibrados, com fruta vibrante e largo potencial de envelhecimento. Embora associada a solos xistosos ou calcários noutras paragens, a Tinta Roriz também prospera sem dificuldade na matriz granítica do Dão, a qual lhe transmite frescura, elegância e uma certa mineralidade.
Apesar deste contexto favorável, o vigor natural da casta exige uma gestão cuidada nos solos mais férteis da região. Há que controlar este vigor, escolher porta-enxertos adequados e implementar podas precisas. Por outro lado - e apesar de colocar desafios à consistência dos vinhos - a fragmentada estrutura fundiária do Dão também dá azo a uma enologia feita de incontáveis variações estilísticas.
Aqui, a vindima da Tinta Roriz ocorre tipicamente entre a segunda quinzena de setembro e a primeira de outubro. A altitude diversa leva a maturações desfasadas que exigem uma monitorização cuidadosa. Muitos produtores de qualidade, como a Quinta da Alameda, optam pela tradição da vindima manual.
A casta assume um papel primordial tanto nos lotes como nos vinhos monovarietais da região. Estes últimos denotam polidez, intensidade aromática e notável potencial de envelhecimento. O seu perfil sensorial encerra frutos vermelhos e negros maduros, nuances florais, notas especiadas e taninos frequentemente suaves nos vinhos mais jovens.
Nos vinhos de lote, a Tinta Roriz serve como harmonizadora do conjunto ao veicular cor, corpo e taninos estruturantes. Nas suas expressões com Touriga Nacional, a Tinta Roriz aporta frutos vermelhos e suavidade tânica. A Alfrocheiro, por seu turno, oferece a estes lotes cor profunda, taninos macios e aromas de bagas. Por fim, a Jaen pode trazer notas florais distintas, toques de especiarias ou frescura herbal.
O perfil organoléptico forma uma tapeçaria sensorial intrincada. Os aromas da casta variam entre os frutos vermelhos (como a cereja e a framboesa) e os frutos negros (como a amora e a ameixa). Estes são frequentemente acompanhados por notas florais de violeta ou rosa, bem como por especiarias de alcaçuz, cravinho e pimenta preta. Com o estágio, podem assomar notas de ervas frescas, couro ou tabaco.
Usualmente, as expressões do Dão intensificam os aromas de fruta madura - como groselha e amora - notas florais, especiarias e chocolate. Demais descritores incluem as agulhas de pinheiro, cereja preta, bagas silvestres, cedro, eucalipto e bergamota.
No palato, a Tinta Roriz do Dão constroi uma arquitetura gustativa com taninos firmes, nobres e densos, por vezes suaves e macios na juventude, ou vivos e aderentes. A boa acidez transmite frescura num corpo que oscila entre o médio e o pleno. Em conjunto com a sua textura acetinada ou cremosa, estas características originam vinhos versáteis e gastronómicos. A frescura montanhosa do Dão resulta num estilo que privilegia a complexidade aromática, a vivacidade e a finesse estrutural.
Se a sua acidez limpa a untuosidade, então os seus taninos firmes complementam perfeitamente as proteínas e gorduras. Daí que os vinhos de Tinta Roriz sejam adequados a pratos opulentos como a chanfana, os rojões ou o cabrito assado. De forma mais ampla, as carnes vermelhas grelhadas ou assadas, os pratos rústicos e estufados, as massas com molhos intensos e os queijos curados são excelentes companhias. Mas a Tinta Roriz do Dão também se coaduna com a caça, com as aves de capoeira e com os peixes gordos mais elaborados.
Apesar do desafio imposto pelas alterações climáticas, a Tinta Roriz continuará - em princípio - a desempenhar um papel preponderante nos melhores tintos do Dão. Tendo em conta a sua maturação precoce e a altitude da região, os modelos climáticos parecem corroborar este ponto de vista cautelosamente otimista. Oxalá, porque a narrativa vínica desta casta ainda tem muito para contar…
Tinta Roriz, Aragonez, Aragonês, Tempranillo.
Norte de Espanha.
Conhecida pelo amadurecimento precoce, algo que pode reduzir as perdas por intempéries. Tem excelente capacidade de adaptação a diferentes climas e solos. É uma casta vigorosa e produtiva que exige controlo pelo viticultor. Beneficia de marcadas amplitudes térmicas e aprecia solos arejados e inférteis. Fácil de cuidar e conduzir, é a casta tinta mais utilizada na Península Ibérica.
Suscetível a doenças do lenho como a eutipiose e a esca, a doenças criptogâmicas como míldio, oídio ou escoriose e a parasitas como a cigarrinha verde. Apresenta sensibilidade mediana à podridão dos cachos.
Gera vinhos encorpados, com excelente estrutura e equilíbrio.
Robustos, ricos, firmes e bem integrados, com final longo e elegante (quando a vinificação é correta).
Densa e aveludada, com equilíbrio entre taninos, acidez e açúcar.
Boa acidez, o que contribui para a frescura e longevidade do vinho.
Frutos vermelhos e pretos, complementados por notas de couro, tabaco e especiarias. Com o envelhecimento, surgem sabores adicionais, mais suaves e complexos, como chocolate e café.
Intensos e finos, de frutos vermelhos e negros, como cereja, amora e ameixa, frequentemente escoltados por notas de especiarias (canela e pimenta), couro, tabaco e chocolate. Quando envelhecidos em madeira, exalam nuances de café e madeira. Também podem surgir toques florais subtis e ervas frescas.
Tipicamente rubi, profunda. Pode exibir reflexos violáceos, especialmente nos vinhos mais jovens.
Resulta em vinhos sólidos e de grande potencial de guarda.
Carnes vermelhas ricas, pratos de caça, massas com molhos intensos e untuosos, tapas, queijos envelhecidos. Os rosé harmonizam com marisco, polvo, salmão, nozes e frutas vermelhas.
Artigo revisto e validado por Patrícia Santos, enóloga da Quinta da Alameda. Formada em Enologia pela UTAD (Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, 2001). Com prática aprofundada sob Anselmo Mendes. Ampla experiência profissional nas regiões vitivinícolas do Dão, Bairrada e Beira Interior, bem como em Arribes (Espanha).