Entre num museu com pinturas célebres e repare no brilho silencioso de um quadro antigo. O verniz transparente que o protege não lhe rouba a cor. Pelo contrário, preserva o cromatismo, evita fissuras e guarda a memória dos gestos do pintor. A função dos sulfitos no vinho cumpre um papel semelhante. Não pintam a tela vínica. Servem para a proteger.
No discurso enológico, o termo ‘sulfitos’ é a forma corrente de referir o dióxido de enxofre dissolvido. Em contacto com o vinho, este composto assume três formas que dependem do pH: a fração molecular, o ião bissulfito e o ião sulfito. A fração molecular responde pela ação antimicrobiana. As restantes protegem contra a oxidação e inibem enzimas indesejáveis. Na verdade, a eficácia dos sulfitos nasce do equilíbrio entre estas formas e da dose certa em cada etapa da vinificação.
Porque a produção de vinho gera naturalmente dióxido de enxofre. A sequência de eventos que levam à criação dos sulfitos é a seguinte: primeiro as uvas são prensadas; daqui resulta o mosto; o mosto é depois fermentado pelas leveduras; esta fermentação gera álcool, dióxido de carbono e dióxido de enxofre; o dióxido de enxofre reage com a água do mosto e formam-se, finalmente, os sulfitos. Daí que a menção “contém sulfitos” surja no rótulo de todos os vinhos. Na verdade, não existe “vinho sem sulfitos”. O que existe são vinhos sem adição de sulfitos (uma opção praticada nos vinhos com baixa intervenção).
Servem múltiplas funções. Como antioxidantes, preservam a cor, aromas e frescura dos vinhos. Como antimicrobianos seletivos, travam a proliferação de leveduras indesejáveis e de bactérias como a Acetobacter (as quais produzem vinagre). Como inibidores enzimáticos, neutralizam enzimas lesivas como a lacase e a tirosinase. Como adjuvantes à extração, facilitam a saída de taninos e de antocianinas do mosto, algo que robustece a cor e estrutura dos tintos. Atualmente, não existem compostos que repliquem toda esta coreografia de funções com igual precisão e previsibilidade.
Os Romanos foram os primeiros a usar sulfitos na produção de vinho: talvez por mero acaso, descobriram que os recipientes de vinho vazios se mantinham frescos (e sem cheiro a vinagre) após a queima de velas de enxofre no seu interior. Ainda hoje, em conjunto com a água e o ácido cítrico, o dióxido de enxofre continua a ser um dos compostos mais seguros e importantes na higienização das adegas.
As evidências são claras: uma pequena fração da população tem hipersensibilidade aos sulfitos (sobretudo entre pessoas com asma ou alergias). Entre outras manifestações, os sulfitos podem desencadear urticária, desconforto respiratório e reações severas ou mais exuberantes. A rotulagem serve para alertar os consumidores mais suscetíveis. Para além do vinho, os sulfitos também podem ser encontrados nas frutas secas como os damascos e uvas passas, nos crustáceos, nas batatas fritas congeladas e em muitos outros géneros alimentares.
E quanto às dores de cabeça? Bem, neste caso a ligação entre sulfitos e cefaleias é muito mais frágil. Na realidade, as dores de cabeça estão provavelmente relacionadas com as chamadas ‘aminas biogénicas’ (como a tiramina e histamina), com os efeitos do consumo excessivo de álcool ou com a desidratação.
E ocorre um paradoxo interessante neste contexto, dado que uma gestão criteriosa dos sulfitos ajuda a reduzir as populações microbianas que produzem as aminas causadoras de cefaleias. Daí que os vinhos sem adição de sulfitos possam, em certos contextos, contribuir para o aparecimento de dores de cabeça.
Na União Europeia, a menção aos sulfitos é obrigatória a partir de uma determinada concentração (acima de 10 mg/L de dióxido de enxofre). Os limites máximos variam por estilo. Por exemplo, os tintos secos admitem níveis mais baixos do que brancos e rosés; já os vinhos doces aceitam patamares superiores devido ao maior teor de açúcar residual. A nova transparência permite ainda listas de ingredientes e informação nutricional em e-label através de QR Code.
O Dão vive de frescura, elegância e longevidade. Os seus solos graníticos, elevada altitude e forte amplitude térmica geram vinhos de acidez viva e perfumes finos. Nos tintos de Jaen, Alfrocheiro ou Touriga Nacional, os sulfitos no vinho preservam o rubi firme, servem para domar oxidações que secariam os taninos e abrem caminho a um envelhecimento harmonioso. Nos brancos de Encruzado, protegem a delicadeza floral, a textura sedosa e a mineralidade telúrica. Na DOC Dão, não disfarçam falhas. Permitem que a voz do terroir chegue intacta ao copo.
Existem opções promissoras, tal como o uso de quitosano em certos contextos. A higiene rigorosa, a colheita com critério e a gestão adequada do oxigénio também são importantes neste âmbito. Ainda assim, nenhuma solução isolada mostra a mesma versatilidade do dióxido de enxofre em estilos clássicos com ambição de guarda. Tal como sucede com o verniz de uma pintura famosa, os melhores sulfitos são aqueles que não se evidenciam perante os sentidos, mas cuja ausência se sente no desvanecer da qualidade da obra.
Artigo revisto e validado por Patrícia Santos, enóloga da Quinta da Alameda. Formada em Enologia pela UTAD (Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, 2001). Com prática aprofundada sob Anselmo Mendes. Ampla experiência profissional nas regiões vitivinícolas do Dão, Bairrada e Beira Interior, bem como em Arribes (Espanha).